Um debate ouvido de longe deu nisto, escrito num impulso, numa folha de um bloco.
Lá dentro, os homens discutem, acalorados. O tema e o vinho aquecem os ânimos. Derruba-se o governo, não se derruba o governo. E se sim, como. Aqui, na cozinha, as mulheres afligem-se, umas riem, outras vigiam as panelas que fumegam. E se vem a polícia, pergunta uma, moça nova, faces coradas. A cozinha está na penumbra, só uma lâmpada pende sozinha do tecto. Que venha!, diz uma das mais velhas, brandindo uma colher de pau. As vozes dos homens exaltam-se outra vez, há murros nas mesas, eles só sabem que é preciso derrubar a corja do governo, correr com eles a pontapé se preciso for e mudar, mudar tudo, mas não sabem qual o melhor caminho para lá chegar. Cheira a comida e a tabaco barato, aqui não há ricos, só pobres velhos e novos, todos cansados da pancada da vida. Ai que vamos todos presos, torna a rapariga. 'Tá calada e faz-te graúda!, ralha a mais velha. Toma lá a travessa e vai dar de comer aos homens, que ninguém derruba governos se estiver de barriga vazia!
Ana Militão
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