Estava esquecido. Não havia dúvidas. Estava esquecido naquela sala enorme, altíssima, forrada de prateleiras, atulhada de seres tão díspares como casacos, livros, caixas, pastas, sacos de papel e de plástico que não deixavam ver o que estava lá dentro, até uma bicicleta, enferrujada e triste, encostada a um canto. Guarda-chuvas como ele havia às dezenas, uns mais alegres e optimistas, outros sisudos e calados. Ele morria de medo dos outros e sobretudo morria de medo de ficar soterrado, escondido debaixo de centenas de outros "objectos", como os humanos diziam. Como o encontraria a dona então? A espaços, a porta da sala abria-se e um humano mal encarado atirava mais meia-dúzia de "coisas" lá para dentro. Os sacos, com os seus misteriosos conteúdos, mexiam-se e faziam barulho. Era muito raro aparecer alguém a reclamar os seus pertences, mas de vez em quando o humano aparecia com uns carrinhos e levava "objectos" que normalmente nunca mais voltavam. Dizia-se que era para lhes arranjar novos donos, num leilão ou coisa parecida. Ele não queria uma nova dona. Ele, um guarda-chuva de marca, elegante e distinto, não queria acreditar que a sua dona não viria para o resgatar daquela sala medonha. Fôra abandonado num táxi porque não estava a chover e a dona tinha pressa. Os outros zombavam dele por achar que um dia ia sair dali. A sala não tinha janelas, por isso era difícil saber quantos dias haviam passado desde que fôra ali parar e da dona nem sinal. Cheirava a mofo e a uma mistura ténue dos perfumes usados pelos donos dos "objectos". Às vezes os mais animados faziam festas, mas ele nunca participava. Estava sempre atento à porta, não fosse a dona aparecer. Quando ouviam os passos do humano, os "objectos" corriam para os seus lugares e ficavam bem quietinhos até ele ir embora. Um dia, depois de mais uma festa, que ia correndo mal porque uma pasta caiu de cima de uma prateleira e iam sendo apanhados pelo humano (a sorte é que pensou que o barulho era feito pelos ratos) ele reparou que as suas varetas estavam a ficar ferrugentas, o tecido perdera a vividez de novo e aí deixou de acreditar na vinda da dona para o salvar. Estava esquecido. Não havia dúvidas.
Ana Militão