Ela morava sozinha com o gato, os vizinhos queixavam-se porque o gato miava e ela dizia sempre a mesma coisa, claro que o gato mia, queria que ladrasse? O gato miava mais quando ela saía porque não gostava de estar sozinho mas ela já raramente saía, só para ir à mercearia, à leitaria do fim da rua ou assim. O marido há anos que a deixara, sem uma palavra, só as malas à porta e um adeus meio sumido, mas ao fim da tarde ela ia pôr-se à janela a ver se via o homem subir a rua, talvez viesse pedir desculpa, o gato de volta das pernas dela a pedir festas. Um dia teve um sobressalto porque lhe pareceu ver a figura dele lá muito em baixo, à esquina, hesitante, a fumar um cigarro, mas depois lembrou-se que o marido não fumava e portanto não podia ser ele, só alguém parecido, há tanta gente parecida neste mundo, não é? Os filhos tinham-na esquecido há muito tempo ou fôra ela que se esquecera deles, já nem sabia bem. À noite via as telenovelas com o gato enroscado no colo, ela a dar-lhe mimos e ele a fazer rom-rom. Ontem a campaínha da porta tocou, era tão raro que ela ficou uns segundos sem saber o que era aquilo. Era o marido com uns papéis para ela assinar, queria o divórcio porque ia casar-se outra vez. O gato escondeu-se debaixo do sofá, ela assinou a papelada sem fazer perguntas e ficou admirada por não se sentir triste. Já estava habituada a estar sozinha com o gato e pelo menos a partir de agora já não precisava de ir para a janela ao fim da tarde.
Ana Militão
Ana Militão
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